domingo, 7 de dezembro de 2014

UM CRIOLO E OS QUATRO PRETOS MAIS PERIGOSOS DO BRASIL


Para você que curte música, seja rock, seja soul, seja samba, seja rap, seja blues, seja o que você achar bom; seguem as impressões sobre dois lançamentos nos meses de outubro e novembro que ouvi com atenção.

CRIOLO – CONVOQUE SEU BUDA

Para ouvir Criolo você tem que estar com tempo livre. A aparente degustação fácil é uma mentira. Você precisa ousar.

Eu fui apresentado a ele através do You Tube – informação é tudo. Faz 3 anos. A primeira canção que vi e ouvi foi o brega-bolero: “Freguês da meia noite”. Achei engraçado e muitíssimo bem cuidada a produção. O que chamou a atenção, mais do que a música, hoje gravada e apresentada por Ney Matogrosso, foram os comentários de que o dito e até então desconhecido cantor era um rapper. Ué ?! Rapper ??

Como na disseminação de conhecimento o 4shared é um valoroso aliado, lá estava eu intrigado e de olhos abertos nas noites insones. Pesquisei. Criolo ou Criolo Doido? Fui ávido em busca de notícias e MP3 baixados na madrugada. Cara! O sujeito era bom mesmo !! Isso sem aquela produção toda. Cantada na raça e com ajuda dos amigos, ele tem uma bela história de persistência. “Criolo Doido – Live in SP” entrega boas músicas e interessantíssimas construções em suas letras. Na maior parte das vezes, e é essa a sabedoria do autor, o jogo de palavras permeia o pensamento durante toda a canção sem ser direto. A ambientação constrói uma linha de raciocínio na qual o ouvinte acaba não só entendendo muito  além do que é o tema central da canção, mas tudo que gira em seu entorno.

O premiadíssimo “Nó na Orelha” entregou ao público a inteligência das letras de Criolo aliada a produção também inteligente de Daniel Ganjaman (esse nome é demais !). Uma mistura rítmica onde rap, samba, reggae, bolero, MP do Brasil, foram agrupadas harmoniosamente, criando o perfil do artista.

Hoje, depois de uma enxurrada de prêmios, turnê internacional, Criolo lançou no mês passado mais um disco de canções. “Convoque seu Buda”. A evolução em sua obra é indiscutível. Criolo que se diz muito preto para ser branco e muito branco para ser preto, miscigena suas construções e definem seu perfil.

Uma passada nas miscigenações de Criolo:

“Convoque seu Buda” para trazer paz aos ânimos exaltados de manifestações e apreensões dos trabalhadores. A melodia mistura uma canção oriental à uma lenta batida de rap. O vocal de Criolo surpreende a quem nunca assistiu às suas apresentações ao vivo.  Os seguintes versos no refrão definem a que universo pertencem:” Nin-Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu-jitsu/ Shiva, Ganesh, Zé Pilinda e equilíbrio/ Ao trabalhador que corre atrás do pão/ É humilhação demais que não cabe nesse refrão”

“Esquiva da esgrima” um rap composto de fotografia sobre fotografia, um quadro de pouca esperança, exceto por alguma grana para se ganhar. Triste e bela.

“Cartão de visita” é uma crítica ao consumismo. Pergunta se precisamos de tanta ostentação enquanto meninos continuam pedindo nos sinais. Pergunta se precisamos que o governo estimule o consumo enquanto a ignorância cresce. Verso perfeito: “Parcela no cartão essa gente indigesta”.

“Casa de papelão” mostra o ambiente insalubre, insano e impossível do crack.

“Fermento pra massa” é um típico samba de paulista. Diferente de “Nó na orelha” do álbum anterior, não é tão sutil ou engenhoso. A mais fraca do álbum - não dá para acertar todas, né ?!

“Pé de breque” já é conhecida de gravações que circulam pela internet. Clima do “The Specials” neste reggae bem legal.

“Pegue pra ela” tem um arranjo que lembra canções da MPB dos anos 70. Dori Caymi assinaria sem olhar. Bela canção.

“Plano de vôo” é o retorno de Criolo à sonoridade do primeiro álbum “Ainda há tempo”, só que com o selo de qualidade Ganjaman e a participação do rapper Síntese. Resgate da grandiloquência de um rap que só vi em Criolo.

“Duas de cinco” volta ao tema que aparece com constância em suas músicas: como fazer as pessoas crescerem num ambiente corrompido e violento.

“Fio de Prumo (Padê Onã)” A melhor do álbum. Juçara Marçal com voz preciosa derrama versos sincréticos abrindo caminhos e tombando o mal de joelhos. O jogo de palavras de Criolo é  G-E-N-I-A-L !!


Valeu Criolo !!!

*            *            *

RACIONAIS MC’s – CORES E VALORES

Para ouvir Racionais MC’s você tem que estar com tempo livre. A aparente degustação fácil é uma mentira. Você precisa ousar.

Eu fui apresentado ao rap nacional pela porta da frente. Ouvi antes de outros rappers os autointitulados “quatro pretos mais perigosos do Brasil” quando eles ainda não eram modinha. O ano 1994. O grupo aos poucos se consolidava em SP como as vozes mais contundentes da periferia. Nessa época , Thaíde – outro rapper, contemporâneo dos RMc’s – não sorria e a cena não era cult, era fechada. Ouvi o disco “Racionais’MC’s”, uma coletânea.  A canção que me chamou atenção foi “Tempos Difíceis”.  Além desta, uma que ganhou certo destaque: “Fim de semana no parque”.

Aqui no Rio, se achava que era um monte de favelado de SP querendo ser do Bronx. Nada mais errado; uma distância abissal da realidade do sudeste de SP e a que se entendia fora do Brasil.

Três ou quatro anos depois um soco no estômago com “Sobrevivendo no Inferno”. Eu sou casca grossa para esses paranauês, mas uma mistura de raiva, angústia, nó na garganta e olhos marejados surgiram ao ouvir atentamente e pela primeira vez “A fórmula mágica da paz”. Você acaba repetindo: descanse seu gatilho, irmão e procure a sua paz. Está na lista das músicas que mais ouvi na vida. Junto dela, os petardos “Capítulo 4, versículo 3” ; “Diário de um detento”; “Periferia é periferia”  e uma regravação de “Jorge da Capadócia”.

Em 2002 recarregaram suas baterias para o álbum duplo “Nada como um dia após o outro”. Destacavam-se “Vida Loka” e “Jesus chorou” – “do que adianta eu ser durão e o coração vulnerável...”

Doze anos depois estão de volta com o sexto álbum de inéditas: “Cores e valores”.

Lançado na semana passada. Baixei no mesmo dia. Não me arrependi.

Os versos continuam crus. Mas os olhos da experiência agora, depois de uma dúzia de anos, assistem e verbalizam uma evolução real da favela e uma renovação da sonoridade - mais limpa e ambiciosa, vinda do Capão Redondo.

Uma passada nas "quebradas":

Em “Cores e valores”, a canção que dá título ao álbum se junta em sequência a “Somos o que somos”.  Sem se importar em querer agradar a quem quer que seja, os versos pretendem afirmar a aceitação a si mesmo mas não a realidade à sua volta.

“Eu te disse” é simples: mexeu com mulher alheia pá. Não preciso dizer mais nada, certo mano?!

A sincopada “Cores e valores - Preto e amarelo”, mistura fé(?) e desejo pelo vil (?) metal – “na medida do possível vou louvando o Senhor/ dinheiro é bom de no Capão, Nova Iorque, onde for !” .

A hipnótica “Preto Zica” com seu jogo de palavras e gírias que se acumulam verso a verso pedem cuidado contra  o vacilo, senão: sem perdão.

“Cores e valores – Finado Neguin” descreve o modo de morte do tráfico e o tempo curto dos “neguin” que se envolvem.

Critica ao olhar da mídia sobre a confusão do Viradão Cultural em 2007 na faixa “A praça”. Sampleando.

“A escolha que eu fiz” a visão crime pelo criminoso depois de “perder”, ladrão –nesse caso um pulmão. Nada de novo, o bom e velho rap RMc’s - dessa vez citam até o Datena.

Em “Eu compro” o impulso consumista em contraponto com a realidade. Rolezinhos são sonhos.

“O mal e o bem” é um ABSURDO DE BOA !!!!!! Tiraram Timbaland do bolso e fizeram e melhor música do álbum. Urgente e Racional na voz de Edi Rock. 

“Você me deve” negritude sem coitadismo. Canta Mano Brown: “os preto têm que chegar”.

“Quanto vale o show”. História do RMc’s antes dos RMc’s. Para entender  o porque e no que deu.

“Coração Barrabaz” é uma arrastada canção de amor em versos destilados com a voz modificada de Brown. Que letra interessante! Quase uma introdução para a próxima canção.

"Eu te proponho" na voz romântica de Mano Brown – é..., malandro também ama. A música é a intenção de fuga de um amor bandido. Daí uma lista de pequenas homenagens a algumas "canções enamoradas" dos anos 70 e 80. São citadas "Vamos fugir" , "Eu te proponho" , "Pro dia nascer feliz" , "Exagerado" , "Fulgás" e a canção se encerra com um sampler de "Castiçal de Cassiano".


Quem estiver afim, ouse e ouça.


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