Para você que curte música, seja
rock, seja soul, seja samba, seja rap, seja blues, seja o que você achar bom;
seguem as impressões sobre dois lançamentos nos meses de outubro e novembro que
ouvi com atenção.
CRIOLO – CONVOQUE SEU BUDA
Para ouvir Criolo você tem que
estar com tempo livre. A aparente degustação fácil é uma mentira. Você precisa
ousar.
Eu fui apresentado a ele através
do You Tube – informação é tudo. Faz 3 anos. A primeira canção que vi e ouvi
foi o brega-bolero: “Freguês da meia noite”. Achei engraçado e muitíssimo bem
cuidada a produção. O que chamou a atenção, mais do que a música, hoje gravada
e apresentada por Ney Matogrosso, foram os comentários de que o dito e até
então desconhecido cantor era um rapper. Ué ?! Rapper ??
Como na disseminação de
conhecimento o 4shared é um valoroso aliado, lá estava eu intrigado e de olhos
abertos nas noites insones. Pesquisei. Criolo ou Criolo Doido? Fui ávido em
busca de notícias e MP3 baixados na madrugada. Cara! O sujeito era bom mesmo !!
Isso sem aquela produção toda. Cantada na raça e com ajuda dos amigos, ele tem
uma bela história de persistência. “Criolo Doido – Live in SP” entrega boas
músicas e interessantíssimas construções em suas letras. Na maior parte das
vezes, e é essa a sabedoria do autor, o jogo de palavras permeia o pensamento
durante toda a canção sem ser direto. A ambientação constrói uma linha de raciocínio
na qual o ouvinte acaba não só entendendo muito além do que é o tema central da canção, mas tudo que
gira em seu entorno.
O premiadíssimo “Nó na Orelha”
entregou ao público a inteligência das letras de Criolo aliada a produção também inteligente de Daniel Ganjaman (esse nome é demais !). Uma mistura rítmica
onde rap, samba, reggae, bolero, MP do Brasil, foram agrupadas harmoniosamente,
criando o perfil do artista.
Hoje, depois de uma enxurrada de
prêmios, turnê internacional, Criolo lançou no mês passado mais um disco de
canções. “Convoque seu Buda”. A evolução em sua obra é
indiscutível. Criolo que se diz muito preto para ser branco e muito branco para
ser preto, miscigena suas construções e definem seu perfil.
Uma passada nas miscigenações de
Criolo:
“Convoque seu Buda” para trazer
paz aos ânimos exaltados de manifestações e apreensões dos trabalhadores. A
melodia mistura uma canção oriental à uma lenta batida de rap. O vocal de
Criolo surpreende a quem nunca assistiu às suas apresentações ao vivo. Os seguintes versos no refrão definem a que
universo pertencem:” Nin-Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu-jitsu/ Shiva, Ganesh, Zé
Pilinda e equilíbrio/ Ao trabalhador que corre atrás do pão/ É humilhação
demais que não cabe nesse refrão”
“Esquiva da esgrima” um rap composto de fotografia sobre fotografia, um quadro de pouca esperança, exceto
por alguma grana para se ganhar. Triste e bela.
“Cartão de visita” é uma crítica
ao consumismo. Pergunta se precisamos de tanta ostentação enquanto meninos
continuam pedindo nos sinais. Pergunta se precisamos que o governo estimule o
consumo enquanto a ignorância cresce. Verso perfeito: “Parcela no cartão essa
gente indigesta”.
“Casa de papelão” mostra o
ambiente insalubre, insano e impossível do crack.
“Fermento pra massa” é um típico samba
de paulista. Diferente de “Nó na orelha” do álbum anterior, não é tão sutil ou engenhoso. A mais fraca do álbum - não dá para acertar todas, né ?!
“Pé de breque” já é conhecida de
gravações que circulam pela internet. Clima do “The Specials” neste reggae bem
legal.
“Pegue pra ela” tem um arranjo
que lembra canções da MPB dos anos 70. Dori Caymi assinaria sem olhar. Bela canção.
“Plano de vôo” é o retorno de
Criolo à sonoridade do primeiro álbum “Ainda há tempo”, só que com o selo de
qualidade Ganjaman e a participação do rapper Síntese. Resgate da grandiloquência
de um rap que só vi em Criolo.
“Duas de cinco” volta ao tema que
aparece com constância em suas músicas: como fazer as pessoas crescerem num
ambiente corrompido e violento.
“Fio de Prumo (Padê Onã)” A
melhor do álbum. Juçara Marçal com voz preciosa derrama versos sincréticos
abrindo caminhos e tombando o mal de joelhos. O jogo de palavras de Criolo é G-E-N-I-A-L !!
Valeu Criolo !!!
* * *
RACIONAIS MC’s – CORES E VALORES
Para ouvir Racionais MC’s você
tem que estar com tempo livre. A aparente degustação fácil é uma mentira. Você
precisa ousar.
Eu fui apresentado ao rap
nacional pela porta da frente. Ouvi antes de outros rappers os autointitulados “quatro
pretos mais perigosos do Brasil” quando eles ainda não eram modinha. O ano 1994.
O grupo aos poucos se consolidava em SP como as vozes mais contundentes da
periferia. Nessa época , Thaíde – outro rapper, contemporâneo dos RMc’s – não sorria
e a cena não era cult, era fechada. Ouvi o disco “Racionais’MC’s”, uma coletânea. A canção que me chamou atenção foi “Tempos
Difíceis”. Além desta, uma que ganhou
certo destaque: “Fim de semana no parque”.
Aqui no Rio, se achava que era um
monte de favelado de SP querendo ser do Bronx. Nada mais errado; uma distância
abissal da realidade do sudeste de SP e a que se entendia fora do Brasil.
Três ou quatro anos depois um soco no estômago com “Sobrevivendo no Inferno”. Eu sou casca grossa para esses paranauês, mas uma mistura de raiva, angústia, nó na garganta e olhos marejados surgiram ao ouvir atentamente e pela primeira vez “A fórmula mágica da paz”. Você acaba repetindo: descanse seu gatilho, irmão e procure a sua paz. Está na lista das músicas que mais ouvi na vida. Junto dela, os petardos “Capítulo 4, versículo 3” ; “Diário de um detento”; “Periferia é periferia” e uma regravação de “Jorge da Capadócia”.
Em 2002 recarregaram suas baterias para o álbum duplo “Nada como um dia após o outro”. Destacavam-se “Vida Loka” e “Jesus chorou” – “do que adianta eu ser durão e o coração vulnerável...”
Doze anos depois estão de volta
com o sexto álbum de inéditas: “Cores e valores”.
Lançado na semana passada. Baixei
no mesmo dia. Não me arrependi.
Os versos continuam crus. Mas os
olhos da experiência agora, depois de uma dúzia de anos, assistem e verbalizam uma
evolução real da favela e uma renovação da sonoridade - mais limpa e ambiciosa,
vinda do Capão Redondo.
Uma passada nas "quebradas":
Em “Cores e valores”, a canção
que dá título ao álbum se junta em sequência a “Somos o que somos”. Sem se importar em querer agradar a quem quer
que seja, os versos pretendem afirmar a aceitação a si mesmo mas não a
realidade à sua volta.
“Eu te disse” é simples: mexeu
com mulher alheia pá. Não preciso dizer mais nada, certo mano?!
A sincopada “Cores e valores - Preto
e amarelo”, mistura fé(?) e desejo pelo vil (?) metal – “na medida do possível
vou louvando o Senhor/ dinheiro é bom de no Capão, Nova Iorque, onde for !” .
A hipnótica “Preto Zica” com seu jogo de
palavras e gírias que se acumulam verso a verso pedem cuidado contra o vacilo, senão: sem perdão.
“Cores e valores – Finado Neguin”
descreve o modo de morte do tráfico e o tempo curto dos “neguin” que se
envolvem.
Critica ao olhar da mídia sobre a
confusão do Viradão Cultural em 2007 na faixa “A praça”. Sampleando.
“A escolha que eu fiz” a visão
crime pelo criminoso depois de “perder”, ladrão –nesse caso um pulmão. Nada de
novo, o bom e velho rap RMc’s - dessa vez citam até o Datena.
Em “Eu compro” o impulso consumista
em contraponto com a realidade. Rolezinhos são sonhos.
“O mal e o bem” é um ABSURDO DE
BOA !!!!!! Tiraram Timbaland do bolso e fizeram e melhor música do álbum.
Urgente e Racional na voz de Edi Rock.
“Você me deve” negritude sem
coitadismo. Canta Mano Brown: “os preto têm que chegar”.
“Quanto vale o show”. História do
RMc’s antes dos RMc’s. Para entender o
porque e no que deu.
“Coração Barrabaz” é uma
arrastada canção de amor em versos destilados com a voz modificada de Brown.
Que letra interessante! Quase uma introdução para a próxima canção.
"Eu te proponho" na voz
romântica de Mano Brown – é..., malandro também ama. A música é a intenção de fuga
de um amor bandido. Daí uma lista de pequenas homenagens a algumas
"canções enamoradas" dos anos 70 e 80. São citadas "Vamos
fugir" , "Eu te proponho" , "Pro dia nascer feliz" ,
"Exagerado" , "Fulgás" e a canção se encerra com um sampler
de "Castiçal de Cassiano".
Quem estiver afim, ouse e ouça.
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