segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

DEIXANDO PALAVRAS - 2018


Todo fim de ano faço listas.

Tem a renovação das promessas, listas de livros que quero ler, de compras a fazer,...
A mais irritante é a das palavras irritantes do ano.
Todos os anos tem umas palavrinhas que enchem o saco de Papai Noel, imagina o meu(!?)...

Teve o aviso que era "pra já" embora fosse contradição: "demorô".
Teve o sinônimo de muvuca fedorenta e quente: "fervo".
Teve a confirmação de que não era mentira, embora parecesse: "real".
Teve a locução aglutinada interjeitiva que virou uma coisa só: "caraivéi".
Teve o ridículo estrangeirismo abrasileirado acrescido de  acento e fonema: "top" (virou "tópi" - parente do upigreidi).

A palavra irritante do ano de 2018 é... 📢📢📢📢📢
"SHOW"!!!
"Show" substitui o correto, o obrigado, o ótimo, o perfeito, e pelo jeito que é disseminado substitui até um pedido na padaria de  média e pão na chapa:

CLIENTE - Show?! (tradução: Pode me servir média e pão na chapa?!).
ATENDENTE - Show! (tradução: Claro, senhor. É para já!)
CLIENTE - Show! (tradução: Show!. Ops, desculpe: Obrigado! - isso pega... 😡)

Como são todas parentes, o desafio é construir um parágrafo inteiro contendo as elencadas e vitoriosas palavras irritantes e que façam sentido.

Quem conseguir vai ganhar um prêmio: um dicionário pirata que vou baixar no 4SHARED e mandar em PDF em 2019...
Valendo... Show?!

RABANADA QUENTE (miniconto)


Vinte e quatro de dezembro. Depois de algumas temporadas no hotel, era a primeira vez que a escala me favorecia. Finalmente passaria o Natal em casa. Trabalhei o dia todo. Problemas comuns: chegada de material, cartão do hóspede que não passa, troca de quarto, novas reservas para o ano novo, ordenança e governança ativas. Tudo rotina. Coisas comuns para quem lida com serviços.

"Chefe, a senhora do quinhentos e quatro não fez o checkout e as coisas dela ainda estão lá. Tentamos achá-la mas ela sumiu aqui dentro do hotel."
Subi pelo elevador e a camareira abriu a porta para mim. Sobre o sofá uma mala. Na cabeceira da cama algumas fotos ; incomuns na era do smartphone. Toca meu celular. É minha mãe perguntando se já tinha saído. São sete da noite. Olho as fotos e, na maioria delas, uma senhora, um senhor e eventualmente uma moça aparecem. Traços de felicidade, união, sorrisos, candura, cumplicidade. Vários lugares do mundo e em algumas delas num jardim, talvez o lar? 

A camareira aguarda para saber o que fazer. "Junte essas coisas e coloque no depósito no primeiro andar. Anote o que tiver no formulário e deixe na recepção". Meu telefone toca novamente. "Chefe, a senhora apareceu. Está na área externa do restaurante - está sentada olhando para a praia sem falar nada". "Esquece o que eu disse, deixa tudo como está e fecha a porta".

Subi até o restaurante. Minha mãe liga novamente dizendo que Marina chegou, minha irmã - saudades dela, e que a rabanada está quente como eu gosto. Nunca mais tinha comido a rabanada quente que minha mãe fazia quando eu era criança.
"Dona Isolda. Boa noite. A senhora está bem? Precisa de alguma coisa?" Ela permanece olhando para o horizonte. Lá, as Cagarras são manchas que quebram a linha do mar ao anoitecer. Penso na minha mãe. Ela nunca veio aqui. Ia gostar de ver o anoitecer. "Quem?" "Oi Dona Isolda?" "Quem ia gostar de ver o anoitecer?" Pensei alto sem perceber "Minha mãe. E a senhora, gosta daqui?" "Lembranças boas, Natais, viagens..." "Tem alguém lhe esperando nesse Natal? A senhora sairia hoje, me informaram na recepção..." "Minha filha, mas ela está muito longe. Outro país, outra cultura. Viajávamos muito, eu, ela, meu marido. Agora só uma lembrança, uma ligação protocolar. Lembro da árvore montada no jardim, um bom assado para ceia, rabanada quente,..." "Rabanada quente é minha preferida" "As melhores..." Sorriu. Sorrimos.

Ficamos em silêncio. Olhei os cabelos branquinhos daquela senhora, triste, mas serena, com suas reminiscências, com suas saudades. "Dona Isolda, depois de muito tempo esse é o primeiro Natal que passo em casa. Minha mãe já ligou dizendo que tem rabanada quente esperando por mim. A senhora quer ir comigo?"