Parte 3
O short jeans desfiado de Sarah foi
imediatamente retirado e jogado no banco traseiro. Suas pernas realmente não
combinavam com ela. Em suas mãos o esmalte vermelho das unhas começava a soltar
negligentemente. Ainda assim suas práticas manuais foram aceitas de bom grado
pelo homem. O volante clássico de três raios mal podia manter-se estável na
estrada com os movimentos ritmados com que a mulher operava.
Tomás dirigia sob efeito do álcool. Ela,
mesmo alcoolizada, caprichava na empunhadura do falo. Queria realizar uma
operação um pouco mais complicada, mas a altura do câmbio e a distância de um
banco a outro atrapalhavam seus planos. O calor que era quase insuportável na
birosca, agora era vencido pelo vento que era devorado pelas janelas abertas do
automóvel. Seus corpos suados refrescavam-se a medida que Tomás acelerava. Ele
abriu sua camisa de botões e ela conseguiu beijá-lo o peito.
O carro disparado seguia pela rodovia
vazia ao cair da tarde. Uma enorme reta levemente ascendente tinha no final o
brilho do solar intenso. Como uma bola de ouro no horizonte. Colocou os óculos
escuros que estavam sobre a testa sem propósito.
Sarah finalmente conseguiu se posicionar
de forma a agradar seu parceiro com mãos, boca, língua e tudo que se podia
comprar com um bocado de bebida e uns trocados.
A contração de seus músculos pélvicos fez com que Tomás esticasse as
pernas e acelerasse ainda mais o carro. Sua excitação era tamanha que suas mãos
apertavam o volante como se segurasse uma barra de ferro quente que não pudesse
se desprender de sua carne. Um arrepio começava a vir de suas entranhas e se
lançava para fora de seu corpo como jatos de água quente; um após o outro. E
foram muitos. E estes jatos encontravam sua morada em algum lugar desconhecido
que ele mesmo não tinha intenção de saber. Ao final deixou sua cabeça cair
sobre o ombro de olhos fechados para descansar de tal esforço. Então sentiu um
baque único, seco, como jamais ouvira. Pisou no freio com força e fez o carro
rodar pela pista. A mulher mordeu seu pênis. Tomás gritou de dor. Cheiro de
borracha. O carro caprichosamente parou na pista contrária, virado na mão
certa, como se o motorista fosse obrigado a voltar para ver a incomensurável
merda que havia feito.
* * *
Vestiram-se depois do banho. “Se é assim
sempre, vou querer todos os dias”, pensou. Estava leve. A vida era bela. Criou
uma imagem de um grande pote de cerejas onde ele mergulhara e se deitara sobre
as frutas macias e suculentas. Só faltava ela ter poderes também. Dois
mutantes. Enquanto viajava em seu pote de cerejas, ouviu uma voz: “Nossa, está
tarde, só falta ele me levar em casa voando”, leu o pensamento dela.
- Você teria medo?
- O quê?
- De ir voando comigo?
- Para de ler meus pensamentos, Ariel!
- Desculpa. Foi sem querer. Mas me
responde?
- Cara, sei lá?! Você já fez isso?
- Ainda não. Espera um minuto aqui no
quarto.
Ariel foi em direção à área de serviço e
depois a um pequeno quintal. Já era noite e as luzes no fundo da casa não
estavam acesas. Duda ouviu algo como o vento soprando bem fininho, mas ficou
imóvel no quarto. Pensativa. Que loucura tudo aquilo. Já tinha feito sexo, mas
não daquele jeito. Os outros caras foram afobados, inseguros, uns moleques.
Ariel? Nossa, se soubesse... E ainda se preocupou em colocar camisinha sem ela
pedir. Estava calçando suas sandálias, pensando na sorte que tivera quando ouve
novamente o assobio do vento. O rapaz entra no quarto e traz nas mãos uma
camisola com a estampa de um cachorro com a língua de fora.
- Onde você conseguiu isso?
- No seu quarto. Acho que consigo te
levar em casa. Mas antes, quero te levar em um lugar.
* * *
- Pra mim você morreu!
- Devo ter morrido mesmo! Só não sou um marginal como você!!
- Por quê? Você virou outro tipo de
marginal? Eu não sou mais bandido. Paguei por tudo o que fiz.
- Pagou mesmo, Tomás? Cadê minha avó?
- Minha mãe! Você não tem direito de
chamá-la de avó. Você matou minha mãe quando foi embora! Ouviu! Você matou
minha mãe!
- Será que fui eu mesmo? Ou foi você
puxando cadeia e aparecendo de vez em quando com seu bando de merda em casa?
Sempre com droga. Sempre armado... Você é um lixo!!
Silêncio.
- O que você quer? Veio aqui procurando
o quê?
- Vim saber da minha avó. Vim pegar o que é meu. Minha casa. Minhas
coisas.
- Suas coisas? Você não tem mais nada.
Você matou minha mãe de desgosto quando foi embora. Fala de mim. Que sou
marginal. Que andava em bandos. Você fugiu com mais dois. Boa coisa vocês não
iam fazer... O que você quer?
- Seu imbecil. Eu fugi de casa e fui
tentar jogar futebol com outros dois amigos. Se você tivesse ao menos reparado,
eu jogava muito. Minha avó, que você bate no peito para chamar de mãe, sempre
soube disso e apoiou. Não me queria perto de você. Quando eu achei um pacote de
maconha no seu quarto, que ela me fazia limpar todos os dias para você
encontrar uma cama limpa sempre que voltasse de suas merdas; nesse dia ela me
contou quem você era. Ela sempre escondeu sua pilantragem. Cadeia? “Ah, meu
neto, seu pais está viajando”. Depois eu entendi quando o pessoal da rua me
olhava com medo, com pena, com descaso. Filho de bandido. Eu quis te matar! Ela
vivia aflita por sua causa. Sempre pelos cantos...
- ...
- Não adianta por a mão no peito seu
merda! Quem matou MINHA avó foi você. Assassino da própria mãe !!
- ...
- Vou embora ! Moooorra!!!!
* * *
A noite tinha luar e era quente. Ariel
pediu que Duda ficasse às suas costas e enlaçasse seu pescoço. Ariel, sabia
tudo de como ser um super-herói. Ou um vilão.
Levantou voo no quintal de casa sobrevoando acima do arvoredo, postes,
luzes das casas e edifícios baixos de seu bairro. Lentamente, até Duda se
acostumar.
- Duda, pensa que você está em uma moto
e que essa moto não tomba para lado nenhum. Ela sorriu e tudo ficou bom,
plácido, tranquilo. O vento no rosto, a perspectiva da cidade como ela nunca
vira. Estava se deliciando com SEU super-herói. Seu gato, seu príncipe
encantado. Com certeza iria visitá-la todas as noites. Amaria seu corpo como
hoje. Levaria ela as alturas.
Ariel fundia seus pensamentos com os
dela. Na verdade os controlava. Medos e desejos de Duda. Fizera assim até na
relação sexual. Uma hipnose que a deixava entorpecida. Uma droga que invadia
seu cérebro e o mantinha no controle. Mais um superpoder?
- Antes de te levar em casa, vou te
levar num lugar..
- Ta bom. – abraçou com força o tórax
franzino do rapaz, deitou a cabeça em sua nuca, fechou os olhos e sorriu. O
vento tremulava seus cabelos.
Ariel desceu nos fundos do restaurante
de seu avô.
- Vem, vou te apresentar o meu vô.
- Não esquece que preciso voltar logo. Minha mãe deve estar preocupada.
- É rapidinho.
Deram a volta e entraram pela frente. No salão cumprimentou os
empregados e foi em direção ao escritório de mãos dadas com Duda. O restaurante
estava muito cheio. Estranho. Seu avô gostava de circular entre as mesas. Abriu
a porta do escritório. Uma ante-sala com um sofá, uma mesa e algumas cadeiras
que servia para reuniões com os funcionários do restaurante.
* * *
- Vô, o senhor está aí? – teve um
pressentimento. O homem que estivera na sua casa esteve ali também. Empurrou a
porta do escritório que abriu parcialmente. Viu os pés do avô no chão. Empurrou
com força e entrou. Duda assistiu a cena com nervosismo. Voltava do torpor da
fusão dos pensamentos com Ariel. Ela não era mais o foco de seus pensamentos e
sim o avô.
- Vô, responde. Vô, o que aconteceu. Vô cadê o cara que veio aqui.
Seu avô respirava com dificuldade e não conseguia falar. Uma dor
apertava-lhe o peito.
- Duda! – ela embasbacada olhando para o homem grisalho caído ao chão.
- Porra Duda! Avisa lá fora para chamarem um médico.
- Tá bom! Tá bom!
- Vô. Tosse, Vô! Tosse ! Com força, vai. – Ouvira dizer que se um homem
tossisse muitas vezes de tempos em tempos, poderia ajudar. Não sabia se era
verdade. Mas a mão no peito do avô devia significar um infarto. Duda voltou com
um garçom.
- Duda, fica aqui um pouquinho.
- Eu, Ariel?!
- Uns dez minutos. Já volto.
Ariel saiu em disparada. O rastro do visitante estava esmaecendo mais
ainda podia senti-lo. Não estava de moto. Estava a pé. Só não conseguia ver seu
rosto. Andou por uma, duas, três quadras. Virou à esquerda, atravessou a rua.
Seguiu reto e virou à direita. Um hotel barato. Ele estava ali. Entrou. Na
recepção o funcionário do hotel, um homem baixinho, gritou qualquer coisa para
barrar sua entrada. Ariel parou e seu rosto transtornado transformou-se em uma
figura monstruosa. Seus dentes tornaram-se pontiagudos e projetando-se fora de
sua arcada. Seus olhos ficaram vermelhos e suas veias ressaltadas no pescoço pareciam
querer explodir de ódio. Seus punhos serrados mostravam na ponta de seus dedos,
que agora adquirira aspecto animal, unhas poderosas que tentavam atingir o
recepcionista. Sem alcançá-lo, martelou o balcão onde o homenzinho estava
afundando-o com uma única pancada. O homem tentou se esconder atrás de uma
cadeira. Ariel levantou-o segurando pelo fundo de suas calças e pelo colarinho
jogando-o contra a parede. Como um lobo sentiu o cheiro de sua presa. Subiu
pelas escadas até o terceiro andar. 317.
Ariel chegou bem à frente da porta do
quarto e teve uma sensação estranha. Bum !
O meio da porta ganhou um enorme rombo e
ele foi jogado para trás, batendo com a cabeça no corredor oposto. Seu peito
queimava de dor e o sangue escorria por seu abdômen. Sua figura já não era a do
animal feroz e sim do adolescente cheio de espinhas. Um homem aparece e o
observa.
- Que porra é essa moleque? O que você
quer?
Sentiu que o cheiro do homem era igual
ao do seu avô.
- Você é meu pai?
- O QUÊ? Tá maluco? Quem é você?
- Seu cheiro é igual ao do meu avô?
- Maluco de pedra.
- Você não é filho do Tomás?
- Esse filho da puta só entrou com o
esperma.
- Então você é meu pai.
- Guri, eu não posso ter filhos. Já
ouviu falar em vasectomia?
- Por que você foi procurar o meu avô?
- Ele não é teu avô.
- É sim!
- Como é que você sabe que eu fui
procurar “teu avô”?
- Eu senti seu cheiro lá em casa e no
restaurante.
- O quê você é? Um cachorro? – Virou as
costas e riu. Riu muito alto. Riu mais alto do que o tiro que dera em Ariel.
Mas suas risadas foram cortadas por lâminas que lhe atravessaram as tripas num
único golpe.
- Eu posso ser qualquer coisa!
Fechou os olhos. Seus pensamentos voltaram no tempo. Nas peladas na rua.
Na avó chamando para o almoço. Na fuga com os amigos para o interior. Nos
campos de futebol. No estalo de seu joelho. Na irmã que apanhava do marido. No
sobrinho nascendo. No primeiro trago na bebida. Na cocaína que cheirou e
viciou. Nos quartos imundos que teve que dormir. No primeiro homem que matou.
Na Bia que amou. Na Bia que o tirou do vício. Na Bia perdendo o bebê. Na Bia
morrendo em seus braços. O leão mordia seu coração e o seu sangue escorreria
pela sua boca pela última vez...
Assim como ele, Ariel pôde ver seus
pensamentos. Por que fizera aquilo? Quem seria de verdade aquele sujeito? As
lâminas que surgiram nos seus punhos. A história que mais gostava. Seu herói
favorito apareceu em sua cabeça. Agora, Tio Ben em seu ouvido martelando aquela
frase batida. Será que estes superpoderes seriam uma maldição? Sua raiva
incontrolável, antes só direcionada contra motoristas imprudentes estava se
expandindo para qualquer coisa que o contrariasse. Fora lá e não descobrira
nada; só havia arranjado mais dúvidas.
No seu caminho, agora existia um morto. Seus ferimentos estavam fechados. O
chumbo havia sido expelido e repousava sobre sua roupa. Seu sangue ainda fresco
começava a grudar na pele. Tinha que sair dali, o avô estava mal e logo a
polícia chegaria.
* * *
Ariel estava no corredor com Duda. O
médico disse que Tomás só poderia receber uma visita por vez.
- Entra você primeiro.
- Não, vai você na frente. Espero você
aqui. Só nós dois vamos visitá-lo mesmo.
Duda entrou. Ariel ficou olhando a rua
pela janela do corredor da UTI. Os carros que passavam a uns cem metros
passavam vagarosamente naquele trecho. Dois quebra molas cumpriam seu dever de
conter um pouco a irresponsabilidade no trânsito. Naquele andar onde estava só
se ouviam passarinhos na encosta ao lado do hospital. Pensou mais uma vez no
homem que matara. Matou o filho de seu avô que não era seu pai. Precisava de
uma explicação. Mas não ia ser hoje. Agora o importante era o velho Tomás se
recuperar.
- Vem, ele que te ver. Mas não força
não. Está falando com dificuldade mas disse que queria te contar uma coisa.
- Disse o quê?
- Não.
Entrou no quarto. Seu avô estava deitado
reclinado no leito hospitalar. Pequenos tubos estavam inseridos no seu corpo.
Um grande curativo repousava sobre seu peito.
- Oi vô! Que bom te ver!
- A... Ar...Ari...
- Para de falar. Você vai ficar cansado.
- Pre... Preciso... contar...
- Não precisa nada. Agora não. Vim te
ver. Ver como está se recuperando.
“Preciso te contar. Você não é meu neto
de verdade. Quer dizer, é mais como se fosse o filho que eu perdi”
Ariel lia os pensamentos do avô que
olhava fixamente para ele. Seus pensamentos viajavam quatorze anos ao passado.
O carro acelerando a mulher com a cara sob o volante do carro. Os óculos
escuros para proteger do sol. O gozo. A pancada. A dor. O menino em pé olhando
para a mãe contorcida e morta no chão. A mulher de cabelos vermelhos vestindo
um short. O V8 correndo pela estrada fugindo e deixando um casal morto na beira
da estrada. Tomás trazendo o menino no carro com aquela mulher de cabelos
vermelhos. O choro do menino. A decisão de ficar com ele.
Os olhos de ambos encheram-se de lágrimas que não caiam. Fixos um no
outro.
Tomás respirava com força. Puxando o ar com dificuldade e enorme vontade
de chorar. O mesmo sentia Ariel. Suas tristezas vinham do mesmo drama, mas suas
motivações eram diferentes. A pressão do velho subia e os aparelhos que o
monitoravam começavam a ficar alterados. Olhou momentaneamente para as máquinas
para ver o que acontecia.
Ariel levantou seu braço direito vagarosamente com a respiração
ofegante. O olhar marejado de Tomás voltou-se fixamente para três enormes
lâminas que se projetavam dos punhos do garoto e cintilavam em sua direção.
FIM (?)