"O menino está olhando para a comprida via asfaltada
que se prolonga em linha reta até onde a visão pode alcançar, lá longe... Olha
para cima e a mulher com os olhos semicerrados por causa do sol que começa a perder
a força, mas ainda brilha muito a oeste, limpa com a ponta dos dedos sua testa
pequena e suada. O homem volta correndo atravessando a estrada onde não passam
carros há muito tempo. Duas malas bem novas estão no chão e ele se senta sobre
uma delas. Às suas costas um capim amarelado que se prolonga nos dois lados da
estrada. O casal conversa em voz baixa. Os três parecem esperar por alguém; seria
uma carona? O homem caminha em sua direção com um saco de papel engordurado,
agachando-se, oferece metade de um pastel. Ele diz que não quer. Ouvem bem
longe o barulho de um carro no vindo de leste. Ele larga o pastel no colo do
menino e vai para a estrada com a mulher. Ambos levantam os braços e acenam
para o motorista. O carro laranja vai ziguezagueando em alta velocidade pela
pista. O casal percebe o perigo. Olham-se rapidamente e tentam correr de volta
para o acostamento. Ele percebe o carro vindo em sua direção e de relance a
cabeça do motorista que usa óculos escuros. Pula da mala onde está sentado e corre
para um monte de terra no canto do acostamento. O bólido atravessa a pista, e
como um punho gigante acerta em cheio o casal que é arremessado a uma altura
espantosa. Bonecos em uma brincadeira de criança. A mulher cai fazendo um
barulho seco a seus pés.
* * *
-
Merda!
Abre os olhos
assustado. Novamente este pesadelo diário; como uma doença crônica; como um
susto no trem fantasma. Ariel tentava fugir todos os dias, mas, amiúde, tinha
este pesadelo. O que alimentava desde pequeno seu ódio pelo assassino de seus
pais. Teria três, quatro anos? No sonho, o fato consumado. Acordado, pouco se
lembra do passado e do que aconteceu depois. Alguém que o carregava enquanto
ele chorava, e chorava, e chorava. Lembra de um quarto só para ele na casa do
avô. Mal se lembra de sua avó, ainda viva, com os cabelos ruivos. Do avô tentando
distraí-lo com futebol no quintal. É só. Mas durante alguns anos sua mente tinha
um único pensamento: atropelar igualmente o motorista que tinha levado seus
pais de maneira tão violenta.
Conforme foi crescendo,
quando via nos jornais ou na TV qualquer matéria sobre acidentes de trânsito
com pedestres, trazia a tona uma revolta incontida. O avô olhava para ele com
compaixão e em seguida tentava puxar conversa sobre outro assunto para
diminuir-lhe a raiva e a dor. Durante algum tempo o tema passou a ser um dos
assuntos preferidos do menino que proferia palavras raivosas contra qualquer
informação que ouvisse sobre violência no trânsito. Tanto assim, que seu avô o
colocou em sessões terapêuticas como uma forma de amainar seus sentimentos a
assim tentar ajudá-lo, pois não tinham informações sobre o que fazer nestes
casos. O certo, é que não colocava as fotos do pai do menino em porta-retratos
para não aumentar-lhe as saudades e, consequentemente, sua ira. Com o tempo,
cria, iria se dissipar.
Sobre o pai, as poucas
informações que tinha, fornecidas pelo seu avô, era que ele havia fugido de
casa por um rompante adolescente, levando uma mochila, e punhado de dinheiro
que o velho guardava numa caixa de charutos no fundo de um guarda roupa. Ficaram
sem notícias por alguns anos. Quando recebeu uma ligação, surpresa! Disse que
estava morando com uma moça e levaria o neto para conhecê-los. Marcou de chegar
determinado dia e não apareceu. O avô recebeu um telefonema e soube do acidente,
indo buscar o menino órfão. Dali em diante seriam os avôs a criá-lo; a avó por
pouquíssimo tempo. Sobre a mãe, não tinha qualquer informação. Isso o angustiou
por longos anos. À noite, quando pensava no assunto, chorava baixinho para que o
avô não ouvisse, o que era inútil.
Mas o tempo passa e na
adolescência o asco pelo criminoso que matou seus pais foi sendo dividido – não
abrandado - por novos interesses. A natação, o futebol, videogames, a
descoberta do desejo, as garotas impossíveis do sétimo ano, as incontáveis
horas de vício solitário e as HQ’s.
É claro que adorava as
histórias e era fascinado pelos desenhos; mas, sobretudo, nos mundos
fantásticos e delirantes podia ter a heroína que quisesse. E aqueles desenhos
de belíssimas mulheres alimentavam ainda seu fascínio pelas narrativas e o
tesão por “mulheres de papel”. Imaginava-se poderoso e elas suas conquistas neste
mundo erótico paralelo que criava em seu quarto. Por Crystalia, que tinha o
poder de manipular os elementos, já havia viajado para as névoas de Terrigen e
adquirido poderes suficientes para deitá-la sobre densas nuvens e penetrá-la
com toda a força. Embrenhou-se nas teias da Mulher Aranha, rasgando-lhe a
indumentária vermelha e quando percebeu que seus “sensores” estavam vibrando
sobre a malha esfarrapada. Sonhou com Psylocke e atochou seu membro de outra
dimensão em sua musculatura densa, entre espadas e lâminas afiadas. Ou ainda a
mecha grisalha de cabelo da mutante Vampira caindo sobre sua barriga enquanto
sugava toda a energia de seu pau numa felação digna de uma edição inteira. Ah,
heroínas. Verdadeiros vícios. Mas nenhuma delas teve tantas homenagens quanto Druuna,
a mulher mais gostosa dos quadrinhos. Ia a sebos, encontros com outros
adolescentes ou adultos trocar “figurinhas”, sobre as histórias, roteiros e
delícias que via no quadrado desenhado. À noite, o garoto rezava, após todas as
suas covardes “finalizações” na louça do banheiro, pelos traços de Paulo Serpieri.
Como aquele sujeito tinha imaginado uma mulher tão gostosa para criar seu
desenho? Certamente havia pensado em uma brasileira; com sua pele mestiça e
lábios carnudos e formas que aguavam sua boca a cada página que folheava.
Partindo deste mundo de
libido intensa e aterrissando numa terça-feira à tarde no curso de inglês,
apaixonou-se por Maria Eduarda. Não que fosse tão generosa em carnes como as
mulheres da Comics, os seios, talvez... Mas
seu rosto, este sim lembrava muitíssimo Druuna, sua preferida. “Com um pouco de
malhação, quem sabe...” Pensou sozinho na cama, em casa, no dia que à conheceu,
enquanto descabelava seu palhaço.
* * *
Numa destas manhãs em
que o maldito filme mental apossou-se do seu sono, ao acordar, descobriu que
tinha superpoderes. Nessa manhã de descoberta, enquanto a última imagem de seus
pais ainda estava viva - ou morta - na memória, trazidas à tona por aquele
sonho medonho, percebeu-se num despertar nervoso, com o coração taquicárdico e
respiração acelerada. Inspirou profundamente e soltou vagarosamente o ar
fechando novamente os olhos “Foi só um pesadelo. Tenho que me acalmar”. E com
os olhos fechados, repetiu a ação mais uma vez, e mais outra. Sim estava
resolvendo. Sentia-se melhor; mais tranquilo, como se estivesse levitando.
Abriu os olhos e no espelho seu corpo pairava sobre a cama horizontalmente. Um
calafrio percorreu-lhe a espinha ao ver sua imagem suspensa e gritou apavorado.
-
Aaah... !!
Caiu sobre o colchão batendo
dolorosamente seu tornozelo esquerdo na beirada de madeira da cama.
- Puta que pariu !
Ouviu a porta bater alguns
segundos depois. Tum Tum Tum.
- Tudo bem, filho?
- Tudo, vô! To com
câimbra! Acho que treinei demais ontem.
- Quer ajuda?
- Tá passando vô.
Valeu!
Ainda assustado com
aquele pequeno milagre, esfregou o ossinho do tornozelo para amenizar o
dolorido da pancada. “Que porra é essa?” Não sabia bem o que pensar. O choque
foi amainando e ele deitou novamente no travesseiro. “Será que eu consigo fazer
isso novamente?” Fechou os olhos e inspirou profundamente tentando relaxar. Expirou.
Encheu o peito de ar e foi para o ar novamente.
- Caralho ! Que
maneiro! – falou baixinho sentindo um novo calafrio.
Olhou para o relógio.
Ainda eram cinco e dez e nem o sol dera as caras. O dia estaria tomado. Precisava
descansar. Levantaria só às seis e meia para ir à aula. À tarde tinha natação,
depois inglês, levaria a Duda em casa, voltava para a sua e estudava mais algumas
horas, pois as provas do final de ano estavam próximas. Namorar naquele dia, só
pela Internet, mais tarde. Se ela quisesse vir em casa, coisa que jamais fizera,
então que viesse. Ele não sairia à noite com ela ou com os amigos.
Pensou tudo isso,
enquanto flutuava no quarto. Riu de si mesmo e da magia que emanava de sua
vontade. Despretensiosamente. Bastava querer. Tinha que mostrar isso para Duda.
Será que conseguiria carregá-la. Sexo nas alturas! Será que ela toparia “trepar”
com ele ? Com a mesma tranquilidade que levitara, desta vez descera sem
maltratar seu tornozelo. Fechou os olhos e dormiu até as seis e meia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Gostou ? Não gostou ?
Aproveite e deixe seu comentário sobre o assunto !!! É bom saber o que você pensa !!