segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

RABANADA QUENTE (miniconto)


Vinte e quatro de dezembro. Depois de algumas temporadas no hotel, era a primeira vez que a escala me favorecia. Finalmente passaria o Natal em casa. Trabalhei o dia todo. Problemas comuns: chegada de material, cartão do hóspede que não passa, troca de quarto, novas reservas para o ano novo, ordenança e governança ativas. Tudo rotina. Coisas comuns para quem lida com serviços.

"Chefe, a senhora do quinhentos e quatro não fez o checkout e as coisas dela ainda estão lá. Tentamos achá-la mas ela sumiu aqui dentro do hotel."
Subi pelo elevador e a camareira abriu a porta para mim. Sobre o sofá uma mala. Na cabeceira da cama algumas fotos ; incomuns na era do smartphone. Toca meu celular. É minha mãe perguntando se já tinha saído. São sete da noite. Olho as fotos e, na maioria delas, uma senhora, um senhor e eventualmente uma moça aparecem. Traços de felicidade, união, sorrisos, candura, cumplicidade. Vários lugares do mundo e em algumas delas num jardim, talvez o lar? 

A camareira aguarda para saber o que fazer. "Junte essas coisas e coloque no depósito no primeiro andar. Anote o que tiver no formulário e deixe na recepção". Meu telefone toca novamente. "Chefe, a senhora apareceu. Está na área externa do restaurante - está sentada olhando para a praia sem falar nada". "Esquece o que eu disse, deixa tudo como está e fecha a porta".

Subi até o restaurante. Minha mãe liga novamente dizendo que Marina chegou, minha irmã - saudades dela, e que a rabanada está quente como eu gosto. Nunca mais tinha comido a rabanada quente que minha mãe fazia quando eu era criança.
"Dona Isolda. Boa noite. A senhora está bem? Precisa de alguma coisa?" Ela permanece olhando para o horizonte. Lá, as Cagarras são manchas que quebram a linha do mar ao anoitecer. Penso na minha mãe. Ela nunca veio aqui. Ia gostar de ver o anoitecer. "Quem?" "Oi Dona Isolda?" "Quem ia gostar de ver o anoitecer?" Pensei alto sem perceber "Minha mãe. E a senhora, gosta daqui?" "Lembranças boas, Natais, viagens..." "Tem alguém lhe esperando nesse Natal? A senhora sairia hoje, me informaram na recepção..." "Minha filha, mas ela está muito longe. Outro país, outra cultura. Viajávamos muito, eu, ela, meu marido. Agora só uma lembrança, uma ligação protocolar. Lembro da árvore montada no jardim, um bom assado para ceia, rabanada quente,..." "Rabanada quente é minha preferida" "As melhores..." Sorriu. Sorrimos.

Ficamos em silêncio. Olhei os cabelos branquinhos daquela senhora, triste, mas serena, com suas reminiscências, com suas saudades. "Dona Isolda, depois de muito tempo esse é o primeiro Natal que passo em casa. Minha mãe já ligou dizendo que tem rabanada quente esperando por mim. A senhora quer ir comigo?"

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